Reivindicando a Imortalidade
Descubra como um revolucionário francês e pesquisador do egito transformou a história da Engenharia Elétrica, antes mesmo da descoberta do eletromagnetismo.
Por Camila Machado de Araújo
A Engenharia Elétrica nos permite moldar o mundo real a partir de ondas eletromagnéticas. Para isso, é preciso entender o que é um sinal e como se trabalhar com ele. Sinais são formas de transmitir informação, em especial, os sinais elétricos são de suma importância na Engenharia Elétrica, nas mais diversas áreas de atuação. A imagem, o som, podem ser codificados na forma desses elementos e transmitidos para diversas partes do mundo.
O que ocorre é uma analogia entre uma grandeza ou fenômeno do mundo físico (a temperatura, a velocidade, o som, a imagem) e um sinal eletromagnético, como uma tradução de uma linguagem para outra. Esse sinal, por sua vez, pode ser modificado usando propriedades do eletromagnetismo e, posteriormente, uma transformação inversa o retorna para a sua natureza física original ou outra de interesse. Esse é o princípio de funcionamento do telefone, da internet, da televisão, do rádio, citando apenas algumas das aplicações no nosso cotidiano.
Figura 1. Exemplo de um sinal de voz.
[Fonte: http://www.ebah.com.br/content/ABAAAfeXIAF/codificacao-voz]
Para se estudar os sinais elétricos é preciso um modelo matemático que os represente. No entanto, esses podem assumir as mais variadas formas, de acordo com os diversos fenômenos da natureza aos quais correspondem. Desse modo, podem se tornar funções no tempo completamente diferentes e extremamente difíceis de representar, como é possível observar na Figura 1. Representar cada um deles com uma expressão polinomial, por exemplo, é um trabalho aparentemente impossível. Entretanto, um homem provocou seus pares com uma ideia ousada e simplificou essa tarefa para os engenheiros eletricistas há cerca de 200 anos.
Jean Baptiste Joseph Fourier nasceu no dia 21 de Março de 1768, em Auxerre, cidade ao leste da França; sua família era pobre, ele possuía muitos irmãos e antes dos dez anos ficou órfão. Felizmente, sabendo de sua aptidão para para os estudos, cidadãos da região garantiram seu ingresso na Ècole Royale Militaire, instituição local prestigiada, na qual aprendeu, além das matérias básicas, ciências e matemática. Por essa última, mostrou especial apreço e talento.
Figura 2. Jean Baptiste Joseph Fourier.
[Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jean_Baptiste_Joseph_Fourier]
Após terminar os estudos, iniciou uma carreira eclesiástica como noviço, mas o desejo de deixar um grande legado na matemática se manteve. Em uma carta a C. L. Bonard, professor de matemática de Auxerre, Fourier confidenciou: “Yesterday was my 21st birthday, at that age, Newton and Pascal had already acquired many claims to immortality” - em tradução livre: “ontem foi meu 21º aniversário, com esta idade, Newton e Pascal já haviam adquirido muita reivindicação à imortalidade”. Uma premissa dos seus passos futuros que determinariam um grande ganho para a ciência, pois, em 1789, decidiu abandonar a carreira religiosa e, no ano seguinte, aos 22 anos, retornou a Ècole Royale Militaire, agora como professor de matemática.
Nessa época, a Revolução Francesa estava em pleno vigor; Fourier aderiu avidamente aos seus ideais e se tornou membro da Comissão Revolucionária local. No entanto, muito pouco lhe agradou o período do Terror que se seguiu e, devido a ideias contrárias ao regime, ele foi preso. Apesar de seu temor de morrer na guilhotina, como ocorria com os prisioneiros políticos, o próprio líder do regime do Terror, Robespierre, teve esse fim primeiro e, posteriormente, Fourier foi liberto.
Um inestimável período para sua formação se seguiu. Em 1794, foi nomeado para estudar na École Normale Supérieure, instituição criada pelo regime para preparar professores. Fourier era notavelmente o mais hábil dos alunos e suas capacidades se ampliaram rapidamente. Ele foi ensinado por grandes nomes da ciência, como Lagrange, Laplace e Monge, com os quais desenvolveu uma ótima relação, propícia ao início de sua pesquisa em novas áreas da matemática. Graças a esses contatos, foi solto da segunda prisão, decorrente de repercussões da primeira. Posteriormente começou a trabalhar na École Polytechnique e em 1797 sucedeu Lagrange na cadeira de análise e mecânica. Ele era conhecido como um excelente professor.
Apesar de sua carreira acadêmica estar em pleno andamento, em 1798 Fourier precisou se ausentar para fazer uma grande viagem ao desconhecido. Ele foi nomeado para compor a comitiva do general Napoleão Bonaparte ao Egito cujo objetivo era, além de militar, também científico. 165 civis dentre artistas, cientistas e técnicos deveriam recolher informações sócio-culturais e históricas da nova terra desbravada. Monge foi um dos líderes da empreitada não militar e, ao chegarem ao Cairo, foi fundado o Institute d’Egypte - do qual Fourier foi nomeado secretário permanente - para coordenar as atividades e expedições ao longo do rio Nilo.
Quando regressou à França em 1801, ainda que sua intenção fosse retomar a atividade acadêmica, Napoleão o nomeou para um cargo administrativo na sua terra natal, devido às suas exímias habilidades demonstradas no Egito. Mesmo com as exigências das novas atividades, muito bem executadas, neste período ocorreram seus maiores feitos na pesquisa científica. Um deles foi submetido à Academia de Paris em 1807. Tratava-se de um longo trabalho sobre a propagação de calor em corpos sólidos, no qual foi introduzido o desenvolvimento de funções em séries trigonométricas; posteriormente, elas se tornaram conhecidas como as famosas Séries de Fourier
Em seu trabalho, Fourier afirmou que qualquer função definida em um intervalo finito poderia ser representada como uma série trigonométrica. Uma declaração com implicações muito poderosas pois, por mais complicada que fosse uma função, ela poderia ser decomposta em uma soma de outras muito simples, senos e cossenos de diferentes frequências. A Figura 3 exemplifica essa teoria.
Figura 3. Representação gráfica da decomposição de uma função em uma soma de
senos e cossenos. [Fonte: DUGAN, 2004]
Esse enunciado foi ousado para a época; embora já existissem trabalhos que representavam algumas funções comportadas como séries trigonométricas, nenhum até então havia previsto aplicações tão extensas e revolucionárias, mas, de certo modo, contra-intuitivas; por exemplo: como uma função com descontinuidades poderia ser representada por uma série trigonométrica? Além disso, faltava rigor matemático na demonstração da convergência das séries, motivo pelo qual recebeu muitas críticas. Devido a isso, o comitê composto por Lagrange, Laplace, Monge e Lacroix avaliou o trabalho com reservas e apenas um sumário de 5 páginas foi publicado.
Seu trabalho na íntegra só foi publicado em 1822, numa edição de autor. Mas, antes disso, reconheceu-se o valor da pesquisa feita pelo matemático no estudo da propagação do calor. Ele apresentou uma nova forma de se estudar o fenômeno físico sem a necessidade da consideração de um fluido denominado “calórico”, como era estudado anteriormente e, por isso, foi premiado em 1811.
Sua atuação na pesquisa matemática se seguiu até o seu falecimento, em 1830. Como muitos outros grandes homens da ciência anteriores a ele, a importância do seu trabalho só se mostrou posteriormente. No dia 21 de março de 2018, Fourier completaria 250 anos, mas seu legado há de perdurar por muitos outros séculos. Ele reivindicou sua imortalidade com suas contribuições para a ciência. Hoje, a teoria proposta por Fourier está na base da formação de todo o Engenheiro Eletricista e é fundamental para o desenvolvimento científico e tecnológico na área.
Referências:
Fourier, 1768-1830. Francisco Vaz. ELECTROTÉCNICA E TELECOMUNICAÇÕES, junho 2011. Disponível em:
Probability Models in Engineering and Science. H. Benaroya, S. M. Han, M. Nagurka. CRC Press, junho de 2005, pp 214-215.
The Fourier Transform and Its Application. R. N. Bracewell, McGraw-Hill. CRC Press, 1986, pp 462-464.
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