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O Quarto de Mary

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O Quarto de Mary

Imagine uma cientista que apenas enxerga um mundo preto e branco, mas que é uma expert na neurofisiologia da visão. Se um dia ela vir cores, aprenderá algo novo? Entenda sobre esse experimento filosófico que questiona sobre a necessidade das percepções sensoriais na construção do conhecimento.


Por André Igor Nóbrega da Silva


Mary é uma neurocientista brilhante que, por algum motivo, é forçada a investigar o mundo em um quarto completamente preto e branco por meio de um monitor também preto e branco. Apesar dessas limitações, ela decide se especializar na neurofisiologia da visão e, a partir daí, começa a estudar todas as características possíveis das cores. Mary entende os aspectos físicos, químicos e biológicos que regem esse fenômeno e sabe exatamente que padrões de ondas eletromagnéticas atingem a retina, são processados pelo cérebro e permitem a fala de expressões como: “O céu é azul”. O que acontecerá com Mary quando ela sair do seu quarto e finalmente vir algo como o vermelho de uma maçã? Ela aprenderá algo novo ou o seu conhecimento físico já é suficiente para compreender totalmente esse conceito?

Figura 1. O quarto de Mary. [Fonte: https://i.ytimg.com/vi/mGYmiQkah4o/maxresdefault.jpg]

Esse é um experimento proposto pelo filósofo e cientista Frank Jackson em 1982 para defender uma ideia conhecida como “The Knowledge Argument ”. Na visão do autor, se Mary já sabia tudo que há para saber sobre aquele assunto e mesmo assim aprende algo novo ao entrar em contato com a maçã, então existem certas propriedades da natureza – tais como a percepção luminosa – que não podem ser descritas apenas com informações físicas. Tais propriedades são chamadas de Qualia. Trata-se de características subjetivas impossíveis de descrever ou medir. Esse conceito está principalmente ligado a sensações corporais que, assim como na experiência de Mary, nenhuma quantidade de informação científica é capaz de descrever.

Nesse sentido, pode-se imaginar a seguinte situação: considere que, de algum modo, a ciência é capaz de quantificar e recriar perfeitamente o funcionamento do cérebro de uma pessoa, detalhando toda a sua estrutura com uma precisão atômica. Mesmo com posse de todas essas informações, seríamos incapazes de entender as percepções mais básicas desse indivíduo. Nunca compreenderíamos perfeitamente o que ele sentiu quando teve cócegas, quando se apaixonou ou quando sentiu medo.

Figura 2. Qualia. [Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=mGYmiQkah4o]

Para aqueles que acreditam, acima de tudo, na ciência, essa vertente de pensamento é, no mínimo, preocupante. Ora, se existem fenômenos – sejam eles tão simples quanto forem – que não podem ser completamente compreendidos apenas com dados científicos, o que se pode afirmar sobre os acontecimentos que jamais serão experienciados por um humano? Ao concordar com as implicações do experimento de Mary, deve-se concordar, também, que existem limites fundamentais para aquilo que podemos saber, mas que não podemos sentir. Isso significa que há mistérios no universo que nunca se revelarão para a humanidade, não importando a quantidade de esforço alocada.

Desde a publicação dessa tese, filósofos e cientistas vêm debatendo sobre o assunto. Uma das principais linhas de pensamento contrárias à de Frank Jackson é a corrente do fisicalismo. O fisicalismo, de maneira geral, é a tese de que todos os eventos da natureza podem ser descritos com informações puramente físicas. Essa teoria pode ser facilmente comparada aos estudos de alguns filósofos pré-socráticos que buscavam entender a composição do universo. Para Tales de Mileto, por exemplo, a matéria era completamente composta por água, para Anaximandro, o princípio de tudo estava no elemento denominado “ápeiron”, uma espécie de matéria infinita e para Anaxímenes, a fonte da criação era o ar.

Figura 3. Ilustração da corrente do fisicalismo. [Fonte: https://i.ytimg.com/vi/PHhCCjcLdp4/hqdefault.jpg]

Outros pesquisadores argumentam que as conclusões do experimento não são, necessariamente, válidas. Mary, na verdade, não aprenderia algo novo ao observar a maçã, mas sim conheceria uma nova maneira de interpretar tudo aquilo que já sabia. Trata-se, assim, do ganho de novas habilidades e não de um novo saber. A diferença é que a cientista conseguiria, então, imaginar aquela cor, reconhecê-la e lembrá-la. Pode-se ilustrar da seguinte maneira: é possível que uma pessoa entenda completamente que o calor é capaz de ferver a água, mas falhe em perceber que vibrações moleculares também realizam o mesmo fenômeno, apesar do fato de que ambos os conceitos são iguais. Tudo o que Mary iria constatar era que seu conhecimento já era igual àquela percepção nova.

Mesmo com todos os argumentos, a comunidade científica ainda não tem um consenso referente à discussão. Talvez as limitações dos nossos sentidos signifiquem, do mesmo modo, uma limitação do nosso conhecimento. É impossível que um humano sinta o interior de um buraco negro ou veja de perto o nascimento de uma estrela, contudo, existem mentes extraordinárias que nos instigam a descrer nas consequências do experimento. Segundo o físico Carl Sagan, somos uma maneira de o Cosmos conhecer a si mesmo. Portanto, restringir-se à extensão dos nossos dedos ou ao alcance da nossa visão significa restringir, também, o conhecimento científico.




Referências: 

Jackson, F. Epiphenomenal Qualia. The Philosophical Quarterly, Vol. 32, No. 127., abril 1982, p. 127-136.

Jackson, F. What Mary Didn’t Know. The Journal of Philosophy, Vol. 83 , Issue 5 , maio 1986, p. 291-295.

Adressing Qualia: The Knowledge Argument Against Physicalism. Octopus Circus. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=PHhCCjcLdp4. Acesso em 03 de maio de 2017.

Stoljar, Daniel, "Physicalism", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2016 Edition), Edward N. Zalta (ed.). Disponível em:

Nida-Rümelin, Martine, "Qualia: The Knowledge Argument", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Summer 2015 Edition), Edward N. Zalta (ed.). Disponível em: https://plato.stanford.edu/archives/sum2015/entries/qualia-knowledge/.











          






            


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