Matérias‎ > ‎

Materia Programável

--------------------------------------------------------------------------------------------------------

Matéria Programável

O homem cada vez mais perto de programar as moléculas que compõem a matéria do seu dia a dia.


Por Wamberto J. L. de Queiroz


Imagine, após um dia regular no trabalho, chegar à sua casa, sentar em um sofá confortável, pôr um headphone e pensar em falar com alguém querido, como um familiar ou um amigo distante. De repente, de dentro de um depósito metálico prateado, em sua mesa de centro, um pó fino, como uma fuligem escura, começa a emergir e a formar uma nuvem densa que vai girando, mudando de cor e toma a forma exata da pessoa com a qual você desejou falar. A figura recém-formada então se aproxima, lhe abraça, senta ao seu lado e começa a conversar. Vocês conversam e depois de algum tempo juntos a figura volta para a caixa metálica em sua mesa de centro e começa a se desfazer, voltando ao pó inerte e escuro que havia antes da conversa.

Em seguida, você lembra o compromisso que havia agendado para a noite, faz uma busca pela internet, escolhe uma camisa, acessa um site de compras, baixa um arquivo identificador da compra da camisa escolhida, conecta o seu computador quântico portátil à caixa metálica no centro da sua sala e novamente o pó escuro emerge para dar forma à camisa que você adquiriu. Você vai ao seu compromisso e quando volta coloca sua camisa sobre a mesa de centro e ela se desfaz em pó, que se arrasta sozinho para dentro da caixa, deixando a mesa completamente limpa.


(Figura 1.) Ilustração computacional alusiva à composição de um humanoide por uma aglomerado de micropartículas. [Fonte:www.ucrust.com/technology/programmable-matter-using-claytronics]

Bom, se você está achando que este texto é sobre algum filme de ficção científica ou fantasia, caro leitor, está enganado. Este texto é sobre uma tecnologia que ainda está longe de chegar às nossas casas, é certo, mas que há muitos pesquisadores trabalhando para que daqui a uns 50 anos, talvez, possamos desfrutar dos benefícios dessa maravilha conhecida na língua portuguesa como Matéria Programável. Esse conceito surgiu, de forma independente, na Química, na década de 1980, e na Ciência da Computação na década de 1990.

Em 1991, os cientistas Tommaso Toffoli e Norman Margolus, do Massachusetts Institute of Technology, começaram a especular a possibilidade de que uma coleção de pequenos computadores pudessem se comunicar com seus vizinhos imediatos enquanto realizavam processamento em paralelo. De acordo com esses cientistas, um grande número dessas unidades de processamento formaria uma espécie de Matéria Programável. Em sua concepção, Tommaso Toffoli e Norman Margolus imaginaram apenas um computador modular, que pudesse realizar processamento em paralelo para simular processos relacionados ao estudo da teoria da física de partículas. Logo, entretanto, outros pesquisadores começaram a visionar poeira de microrobôs, que pudesse se agrupar para assumir formas variadas.

Na química, esse conceito surgiu das pesquisas do francês Jean-Marie Lehn e dos americanos Donald Cram e Charles Pedersen, laureados com o Prêmio Nobel de Química de 1987, que contribuíram para consolidação da Química Supramolecular, área de conhecimento associada ao estudo dos agregados moleculares conhecidos como supermoléculas, ligadas por ligações não covalentes. Os pesquisadores dessa área de conhecimento vêm lidando com a seguinte questão: Como manipular, organizar e desenvolver a matéria em dimensões manométricas? Da mesma forma que a ciência obteve os enormes avanços nos processos de fabricação de circuitos integrados que revolucionaram a eletrônica moderna, com o emprego de técnicas como a fotolitografia para a construção de dispositivos semicondutores em dimensões submicrométricas, os pesquisadores da química supramolecular têm avançando a passos largos. Tanto que em 2016 o Prêmio Nobel de Química agraciou novamente pesquisadores da química supramolecular, nomeadamente Jean-Pierre Suvage, da França, James Fraser Stoddart, das Escócia e Bernard L. Feringa, da Holanda. Em seus estudos, esses visionários da ciência deram um enorme passo para que um dia uma situação como a descrita no primeiro parágrafo deste artigo possa se concretizar. Apresentaram um dos maiores feitos da engenharia química, as chamadas máquinas moleculares.


(Figura 2.) Ilustração de engrenagem molecular capaz de girar em torno de um eixo. [Fonte:www.cienciahoje.org.br/revista/materia/id/534/n/nanomaquinas]

Máquinas moleculares são estruturas em escala nonométrica pensadas para ter os mais diversos acessórios, como nanoengrenagens, nanotransportadores, armazenadores e processadores de informação e nanomotores. Nas palavras de um de seus precursores, James Fraser Stoddart, elas são definidas como “an assembly of a distinct number of molecular components that are designed to perform machinelike movements (output) as a result of an appropriate external stimulation (input)”, que na Língua Portuguesa podem ser descritas como uma combinação de componentes moleculares distintos projetados para realizar movimentos semelhantes aos das máquinas.


(Figura 3.) Ilustração das etapas de fabricação de um nanoprocessador programável com nanofios de germânio, desenvolvido na Universidade de Harvard. [Fonte:www.inovacaotecnologica.com.br/noticias/noticia.php?artigo=nanoprocessador]

Tal qual nas máquinas macroscópicas, compostas por várias peças, o funcionamento dessas estruturas invisíveis ao olho humano também depende da interação de seus componentes e da forma como eles respondem a estímulos externos para inicializar o seu funcionamento. Muitas máquinas do nosso dia a dia têm seu funcionamento regido por movimentos, geralmente circulares, de componentes internos.

Ter ferramentas apropriadas para desenvolver essas engrenagens em escala submicroscópica é então essencial para os engenheiros que irão desenvolver esse futuro promissor. Os pesquisadores, entretanto, não estão desamparados nessa longa empreitada, eles têm a seu dispor a inteligência universal da natureza. Como fontes de inspiração, eles podem estudar o motor rotatório da síntese de ATP (Trifosfato de Adenosina) que converte ADP (Difosfato de Adenosina) em ATP, por exemplo, ou o motor linear miosina-actinina, necessário às contrações musculares, e até mesmo se basear na verdadeira linha de produção de proteínas que existe no interior dos ribossomos.

A construção de máquinas moleculares só passou a ser possível após o desenvolvimento das denominadas moléculas interligadas, sem uso de ligações covalentes, e capazes de girar em uma única direção. O estudo dessas moléculas começou na década de 1960, com a síntese de arquiteturas formadas por dois ou mais anéis macrocíclicos interligados sem ligações covalentes e inseparáveis, denominadas catenanos. Os avanços relacionados ao projeto dessas estruturas, nas décadas seguintes, permitiram, por exemplo, que no início da década de 1980 moléculas acíclicas fossem fechadas em torno de moléculas cíclicas pré-existentes. O grupo do professor Jean-Pierre Suvage, que possibilitou esse avanço após desenvolver em 1983 a técnica conhecida como “síntese por molde”, obteve estruturas bem mais complexas que o catenano ilustrado na Figura 4.


(Figura 4.) Exemplo de interligação de dois aneis macrocíclicos de oito átomos. [Fonte:www.scielo.br/scielo.php?pid=S0100-40422017000100113&script=sci_arttext]

Ainda na década de 1980, em 1986, o mesmo grupo mostrou ser possível desenvolver estruturas de catenanos capazes de se movimentar em resposta a estímulos externos, como a luz. Inspirados por esses resultados, o precursor dessa tecnologia, professor James Fraser Stoddart, surpreendeu a comunidade científica ao apresentar em 1993 uma estrutura molecular que se comporta como um elevador de 2,5 nm de altura e 3,5 nm de diâmetro. Com essa estrutura, os químicos têm mostrado que as moléculas podem ser controladas para se comportarem como desejarem, assumindo formas de máquinas e, em um futuro não muito distante, como verdadeiros robôs.

As potencialidades dessa tecnologia são as mais variadas possíveis, desde aplicações nas indústrias de telecomunicações e entretenimento, como a situação descrita no primeiro parágrafo, até aplicações na medicina e na área militar. Imagine microrobôs fazendo intervenções no interior do cérebro para conter aneurismas, desobstruindo artérias coronárias, formando nuvens de micromosquitos para levar, ao invés de vírus, vacinas para a população! Por outro lado, o caos pode predominar, com o surgimento de nanorobôs capazes de invadir cérebros e explodir paredes de vasos sanguíneos ou levar vírus potenciais para a corrente sanguínea. Apesar das incertezas que esse futuro distante pode nos apresentar, vale a pena apostar que essa tecnologia fascinante vem para o bem. Vale a pena sonhar com o dia que poderemos programar as moléculas do nosso dia a dia. Que venha o futuro nanomolecular.




Referências: 

Molecular Machines: Nanomotor Rotates Microscale Objects. R. Eelkema,, M. M. Pollard, J. Vicario, N. Katsonis, B. S. Ramon, C. W. Bastiaansen e B. L. Feringa. Nature, vol. 440, num. 7081, pp. 163-163, 2006.

The Nobel Prize in Chemistry 2016: Molecular Machines. K. S. Feu, F. F. D. Assis, S. Nagendra e R. A. Pilli. Química Nova, vol. 40, num. 1, pp. 113-123, 2017.

The Bottom‐Up Approach to Molecular‐Level Devices and Machines. V. Balzani, A. Credi and M. Venturi. Chemistry - A European Journal, vol. 8, num.24, pp. 5524-5532.

A Molecular Elevator. J. D. Badjić, V. Balzani, A. Credi, S. Silvi, J. F. Stoddart. Science, vol. 303, num. 5665, pp. 1845-1849, 2004.

Programmable Matter, S. C. Goldstein, J. D. Campbell and T. C. Mowry. Computer, vol. 38, num. 6, pp. 99-101, 2005.











          






            


Comments