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Somos parentes de roedores

(Texto enviado por leitor)

Era domingo, dia das crianças. Meu pai chegou do trabalho com um pacote que mal lhe cabia nas mãos, coberto de papel de presente. Dei um pulo do sofá, no qual estava deitado nas últimas duas horas assistindo a desenhos animados. Ele se aproximou, sentou no sofá ao meu lado e disse:

- Feliz dia das crianças, Gabriel! – e me deu um forte abraço.

Eu não consegui falar nada. Fora algo inesperado. Aliás, meu pai teoricamente deveria estar numa cidade estranha fazendo acordos diplomáticos com alguma empresa estrangeira. Abri, ou melhor, rasguei o papel de presente rapidamente, e meus olhos brilharam.

Era uma gaiola com dois hamsters, um amarelo e outro cinza, e estava equipada com bebedouro, escada, dormitório e uma roda metálica para que eles se exercitassem. Naquele momento fui o menino mais feliz de que se tem notícia num raio de dezenas de quilômetros. Olhei para o meu pai, com os olhos marejados de lágrimas:

- Obrigado pai!

Depois meu pai, satisfeito consigo mesmo, ergueu-se, piscou o olho para mim, e começou a afrouxar o nó da gravata encarnada e desabotoar a camisa, enquanto andava até a cozinha, provavelmente para perguntar à minha mãe o que teríamos para o almoço.

Eu não lembro de ter comido nada naquele dia, nem nos seguintes. Eu estava completamente encantado por aqueles pequenos roedores. O amarelo chamei de Jerry, e o cinza chamei de Jéssica, embora nunca tivesse ao certo a certeza de que era um casal.

Passei na cozinha e disse:

- Mãe, Jerry e Jéssica querem lasanha, eles estão realmente famintos, estão muito paradões...

- Gabriel – disse minha mãe tirando o cabelo do rosto enquanto mexia um molho vermelho dentro de uma panela – Eles não comem a comida da gente, dá disenteria neles! Acho que eles devem comer vegetais e sementes. Pergunte a seu pai...

- Certo! – disse enquanto corria para o quarto dos meus pais, e cheguei gritando – pai! Você trouxe a comida deles?

Quando entrei vi que meu pai estava falando ao telefone com alguém sobre lucro e despesas, mas ele apontou vigorosamente o dedo para uma sacola dependurada no armador de rede. Eu entendi tudo. Peguei uma cadeira, subi e peguei a sacola. Dentro dela havia sementes de girassol.

Fui até o meu quarto, tirei os bonecos de cima do criado-mudo e coloquei a gaiola lá. Peguei um punhado de sementes de girassol e pus para os hamsters. Eles repentinamente despertaram e correram para o banquete. Eles encheram vorazmente suas bocas e um saco estranho que tinham abaixo do pescoço com sementes de girassol para, posteriormente, no canto mais escondido da gaiola, regurgitar essas sementes e protegê-las.

No início pensei que eles estocavam por uma questão de organização, ou para que não estragasse fácil – tola cabeça de menino. Depois vi que o estoque quase sempre apodrecia antes deles comerem, e percebi que, na verdade, eles escondiam a comida um do outro de modo egoísta. Lembro que bem mais tarde fui comparar isso à necessidade humana intrínseca em acumular bens materiais. Não era isso o que a humanidade fazia consigo mesma? Distribuía os produtos de seu trabalho do modo mais heterogêneo possível, deixando uns com fome e outros com comida demais?

Durante muito tempo, ver o comportamento desses roedores foi o meu passatempo predileto quando eu voltava exausto das aulas matutinas do colégio Ateneu, lugar onde eu aprendia sobre átomos e outras coisas sem utilidade prática para uma criança. E enquanto o professor falava de elétrons eu construía as teorias mais mirabolantes sobre aqueles hamsters.

Um dia eu estava no refeitório do Ateneu quando me veio à cabeça a melhor dessas idéias. Tudo começou quando eu vi os estudantes mais velhos descerem as escadas de acesso com rapidez para ver quem chegava primeiro na fila de comida da Dona Alzira. Não sei se você pensaria o mesmo que eu, mas achei extremamente parecido com os hamsters correndo na rodinha de exercício ou quando os hamsters se jogavam para as sementes de girassol.

Meu Deus! E quando eles estavam nas mesas? Era como os hamsters quando estavam comendo verozmente, derramando comida... Que semelhança! Depois expandi a teoria: E o que éramos nós senão “hamsters” em gaiolas? O colégio era uma gaiola em que nossos pais nos colocavam para poderem trabalhar em paz. Nossas casas eram enormes gaiolas para nos proteger da ameaça do mundo que moldamos com as próprias mãos.

 Mas eles não sabiam que estavam em gaiolas? Quem os poderia alertar? Eles deveriam estar no colégio sim, mas livres, por, na verdade, estarem submetidos à sua própria vontade. Do contrário, quem poderia me convencer de que não eram como os hamsters?

Naquela manhã inventei uma dor de barriga e voltei para casa mais cedo. Minha mãe, ao vir me pegar, falou?

- Filho, o que você está sentindo? Você está um pouco pálido...

Eu lembro como hoje que a minha resposta foi:

- Estou me sentindo apertado dentro de uma gaiola, mãe.

Ela fez uma careta de confusão, mas eu não poderia explicar tudo pra ela agora, afinal, estávamos indo para a nossa gaiola-mor. Ao chegar em casa, corri para o quarto e abri a gaiola de Jerry e Jéssica, colocando-os no piso do quarto. Eles pisaram no chão com certo receio instintivo. Não sabiam o que fazer com a sua liberdade! Senti vontade de chorar, mas me contive, afinal, viver é uma dádiva fatal.
Dizem que somos muito parecidos fisiologicamente com hamsters e ratos, e isso se usa como justificativa para usar ratos para fazer experiências em laboratórios. Em troca os ratos nos transmitem a leptospirose. E daí? A vida engole a vida!

E assim passaram alguns anos. Eu desenvolvi a minha teoria ainda mais. Restrinjo-me a dizer que percebi que, sem a nossa casa, provavelmente ou o capitalismo iria ruir, ou ficaríamos todos loucos.

Passei a observar também as atitudes de meus pais. Ao enfrentarem o dia-a-dia selvagem do trabalho, eles muitas vezes se submetiam ao perigo das ruas, à má vontade e exploração de seus chefes. Tinham muitas vezes que explorar outras pessoas. Percebi que a minha cidade espelhava-se no mundo, que era como uma cadeia alimentar sem precedentes onde a influência do status social definia a legitimidade da bandeira pela qual você luta.

Mas quando meus pais chegavam em casa era diferente. Ali era o seu território. Lá, eles construíram como pássaros que buscam gravetos e barro para construir seu ninho, um lugar onde as suas leis eram obedecidas. Lá poderiam dar vazão às suas necessidades e vícios primitivos, e eu entendi porque só em casa meu pai desabotoava a camisa e afrouxava o nó da gravata encarnada e minha mãe soltava o cabelo. Em casa tudo estava longe da loucura das exigências e da fome das ruas. Que aconteceria com nossa sanidade mental sem esse recurso?

Ah, ia esquecendo. Meus hamsters àquela altura do campeonato estavam velhos e enrugados. Um dia procurei-os pelo chão e não os achei. Meu pai disse que provavelmente algum gato os deve ter matado. Eu já havia me tornado mais maduro, e nem senti muita falta de Jerry e Jéssica. Mas no outro dia, li no jornal “Adolescente é morto por assaltantes enquanto voltava para casa na periferia de Bela Vista”.

Então eu disse:

- Mais um foi rato foi morto porque saiu de sua gaiola.

Naquela tarde, vesti-me de preto.

Francisco de Assis Pinto Cabral Júnior

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