O fracasso da Fosfoetanolamina
Como um químico que utilizava a fosfoetanolamina em oxidações eletrocatalíticas sobre microeletrodos de cobre conseguiu induzir a crença de cura do câncer dessa substância na população, no executivo e no legislativo.
Por Thiago Oliveira Delmiro Neves
Na década de 80, o químico Gilberto Chierice promoveu a distribuição gratuita de pílulas contendo a substância fosfoetanolamina para pacientes com câncer no hospital público de Jaú, São Paulo, tendo como base alguns estudos preliminares em camundongos com tumor de Ehrlich, devido ao bacteriologista alemão Paul Ehrlich (Strzelin, 14 de março de 1854 – Bad Homburg, 20 de agosto de 1915), inexistente em humanos. Após mais de 20 anos de distribuição irregular do composto, o Instituto de Química de São Carlos (IQSC) decidiu interromper a produção e a distribuição da fosfoetanolamina, o que fez vários pacientes recorrerem à justiça para a liberação dessa substância pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Contudo, o composto não havia passado por testes pré-clínicos, não sendo possível saber que efeitos o uso da fosfoetanolamina teria no organismo humano até então. Portanto, o apelo da sociedade para a liberação foi emocional, vindo de pessoas que foram induzidas a acreditar que estariam tomando a cura do câncer. Aliado a essa comoção, a ignorância científica e irresponsabilidade de membros do judiciário e legislativo conseguiram obrigar a Universidade de São Paulo (USP) a fornecer um produto “que não se sabe o que é, não se sabe o que faz e é produzido em condições totalmente inadequadas”, nas palavras do vice-reitor dessa instituição, Vahan Agopyan. Ainda, a USP comunica a todos que clamam pela distribuição da fosfoetanolamina que a substância nunca foi proibida e que está disponível no mercado com alto grau de pureza.
Pouco depois do começo dos debates sobre a liberação da substância, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) anunciou o investimento de 10 milhões de reais para pesquisas com a fosfoetanolamina. Embora a pesquisa tenha sido financiada sem nenhuma evidência concreta de eficácia (desconsiderando relatos pessoais, que tendem a apontar mais casos de sucesso que casos de falha), a ciência ganha em poder entender mais detalhadamente o funcionamento desse éster fosfórico no organismo humano, com potencial para ser utilizado em tratamentos de câncer futuramente.
Todavia, antes de quaisquer resultados da pesquisa, políticos com interesses duvidosos propuseram a liberação do uso compassivo da fosfoetanolamina em pacientes com câncer, negligenciando quaisquer conselhos da comunidade científica. Na Câmara Federal dos Deputados, também foi afirmado que estudos demonstraram a alta eficácia do tratamento e que os pacientes teriam direito de tentar outras alternativas. Além de não existirem tais estudos na época em que foi feita a afirmação, o “direito de tentar” não é argumento para a aprovação da lei, pois quaisquer substâncias, de água sanitária a urânio enriquecido, encaixariam-se na descrição e deveriam ser liberadas. É plausível que pessoas em estado terminal e desesperador tenham o direito de tentar o que lhes for conveniente, mas esse fato não deve ser utilizado de forma a banalizar o sofrimento alheio, como foi feito com tal medida populista e anti-científica.
Em março de 2016, os primeiros resultados da pesquisa do MCTI foram divulgados. A análise revelou que as pílulas que estavam sendo distribuídas, consideradas de alto grau de pureza, não continham apenas fosfoetanolamina, e sim uma mistura de compostos com diferentes concentrações. Numa análise química realizada pelo IQSC com amostra de fosfoetanolamina produzida pelo Sr. Salvador Claro Neto, consta que a pílula continha 16,9% de fosfoetanolamina, 37,5% de monoetanolamina e 45,6% do sal de fosfoetanolamina. Em uma análise mais recente pelo Dr. Luiz Carlos Dias da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Dr. Eliezer Barreiro da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), as proporções das substâncias divergem da primeira análise, sendo 32,2% de fosfoetanolamina, 18,2% de monoetanolamina, 3,9% de fosfobisetanolamina, 38,5% de fosfatos e 7,2% de água. Ou seja, não eram desconhecidos apenas os efeitos colaterais da fosfoetanolamina como também sua concentração na pílula distribuída era desconsiderada por Chierice e seus colaboradores.
Os testes realizados pelo MCTI para a citotoxicidade da fosfoetanolamina e fosfobisetanolamina, através do ensaio de MTT (uma das metodologias do estudo), nas concentrações de 100 µM, 300 µM, 1.000 µM, 3.000 µM e 10.00 µM, não resultaram em nenhuma alteração da citotoxicidade nas células de melanoma nem de carcinoma de pâncreas. No entanto, a monoetanolamina nas concentrações de 100 µM, 300 µM, 1.000 µM, 3.000 µM e 10.000 µM causou uma redução proporcional à concentração em células de melanoma, com concentração inibitória de 7.774 µM e inibição de 62,3%, assim como em células de carcinoma de pâncreas, com concentração inibitória de 5.525 µM e inibição de 75,3%. Os resultados com a monoetanolamina parecem promissores com um alto nível de inibição, porém, é preciso comparar com as substâncias usuais de tratamento para os respectivos tipos de câncer. A cisplatina, medicamento antitumoral contra células de melanoma, apresentou concentração inibitória de 2,96 µM com inibição de 86,8%. Já a Gencitabina, medicamento antitumoral contra o carcinoma de pâncreas, apresentou concentração inibitória menor que 0,1 µM. Dessa forma, a monoetanolamina se faz 2.600 vezes, aproximadamente, menos potente que a Cisplatina para tumores de melanoma.

Tabela 1 – Concentração inibitória aproximada nas três metodologias (ensaios) aplicadas.
O resultado do estudo afirmou a ocorrência de atividade citotóxica e antiproliferativa apenas da monoetanolamina, porém, com várias ordens de magnitude (de 7.000 a 70.000) menos potente que os antitumorais Cisplatina e Gencitabina, ou seja, seriam necessários mais de três litros da substância para se obter o mesmo benefício de uma gota de quimioterapia comum em células in vitro. A fosfoetanolamina e fosfobisetanolamina não apresentaram, então, atividade citotóxica ou antiproliferativa em nenhuma das três metodologias utilizadas.
Um outro estudo de caso no interior de São Paulo também revelou uma progressão rápida de metástase de tumores no fígado de um homem de 60 anos que decidiu tomar as pílulas por conta própria. Depois de dois meses de uso, os tumores espalharam-se por todo o corpo do paciente, que faleceu duas semanas após esse exame. O médico Kaliks, de quem o homem era paciente, concluiu que, no mínimo, as pílulas não tiveram efeito no combate à enfermidade, podendo até ter acelerado o processo de metástase dos tumores.
Figura 1 – Exame de paciente antes e depois de usar as pílulas de fosfoetanolamina. As manchas escuras representam os tumores, a não ser pelo cérebro, intestinos, rins e bexiga.
Portanto, mostrou-se que a milagrosa fosfoetanolamina é completamente inútil no combate ao câncer da forma como o químico Chierice havia afirmado. O próximo passo da pesquisa é testar os efeitos colaterais dos compostos encontrados nas pílulas em camundongos e em células humanas saudáveis.
Apesar dos resultados claros do fracasso da substância, a presidente Dilma Rouseff sancionou, sem vetos, a lei que autoriza o uso da fosfoetanolamina sintética por pacientes diagnosticados com neoplasia maligna. O produto poderá ser usado por livre escolha dos pacientes, desde que tenham laudo médico comprovando o diagnóstico e um termo de consentimento do paciente ou responsáveis. A presidente simplesmente ignorou o parecer dos Ministérios do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, Saúde, Ciência, Tecnologia e Inovação e também da Anvisa e Advocacia-Geral da União, que sugeriram o veto completo do projeto de lei.
É preciso atentar para quaisquer alegações e promessas milagrosas, assim como é mister consolidar uma sociedade educada cientificamente, para que oportunistas e populistas não se sirvam do povo para autopromoção. Vale lembrar que o atropelamento do método científico pode gerar consequências desastrosas, como foi com a talidomida na década de 50, deixando milhares de crianças sequeladas. Logo, nota-se o enorme despreparo daqueles que guiam o país em lidar com questões científicas, fato que se deve ao grande desinteresse pela Ciência por parte dos integrantes dos três poderes da República e à ausência de cientistas em seus órgãos. Felizmente, a fosfoetanolamina ainda não deu indícios de efeitos colaterais a curto ou a longo prazo. Resta esperar do povo brasileiro maior ceticismo e confiança na Ciência, pois toda a tecnologia, todos os avanços médicos, provêm da metodologia científica.
Referências:
Avaliação da atividade citotóxica e antiproliferativa da fosfoetanolamina, monoetanolamina e fosfobisetanolamina em células humanas de carcinoma de pâncreas e melanoma. Disponível em http://www.mcti.gov.br/documents/10179/1274125/Resumo+executivo+Encomenda+MCTI-CNPq+-+Citoxicidade+celulas+canceriginas+humanas.pdf/b1acdfa5-4743-4bfe-affa-0e8ca222fad2. Acesso em 24 de abril de 2016.
Primeiros testes: “fosfo da USP” não funciona e não é “fosfo”. Disponível em http://carlosorsi.blogspot.com.br/2016/03/primeiros-testes-fosfo-da-usp-nao.html. Acesso em 24 de abril de 2016.
Dilma sanciona, sem vetos, ‘pílula do câncer’. Disponível em http://saude.estadao.com.br/noticias/geral,dilma-sanciona--sem-vetos--pilula-do-cancer,1855920. Acesso em 24 de abril de 2016.
Exame mostra multiplicação de tumores mesmo após uso da fosfoetanolamina. Disponível em http://epoca.globo.com/vida/noticia/2016/04/exame-mostra-multiplicacao-de-tumores-apos-uso-da-fosfoetanolamina.html. Acesso em 24 de abril de 2016.
Os fatos sobre a fosfoetanolamina. Disponível em http://www5.usp.br/99485/usp-divulga-comunicado-sobre-a-substancia-fosfoetanolamina/. Acesso em 24 abril de 2016.
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