Sapo, café e um hipermercado
Um
grupo empresarial de cifras milionárias, cujo nome complicado não cumpro
lembrar agora, inaugurou mais um hipermercado dos grandes na avenida onde moro.
Logo abandonei o antigo lugar onde fazia compras sem nenhum remorso ou
sentimentalismo.
Motivos não me faltaram. Esse novo estabelecimento comercial além de ter me
conquistado devido aos preços imbatíveis, ainda tinha serviço de banco, café,
banheiro, tabacaria, drogaria, lanchonete, restaurante e revistaria.
Perambulando pelo lugar existiam quarenta auxiliares terceirizados usando
patins. Estes seres de capacete e camisa estampando a logomarca do hipermercado
deslizavam de um lado para o outro, tirando dúvidas dos clientes, organizando
as prateleiras e fazendo a manutenção higiênica. Existiam trinta e cinco caixas
sempre disponíveis através de um sistema rotativo que funcionava vinte e quatro
horas por dia, de modo que até agora sempre fui atendido antes de um intervalo
de dez minutos. As paredes dos pisos superiores eram todas de vidro, dando aos
clientes a sensação de estarem flutuando sobre nuvens, e vendo o panorama da
cidade de camarote. Se tivesse espaço para dormir, certamente abandonaria o meu
apartamento para morar nessa oitava maravilha do mundo moderno.
Mas o estranho caso que vim contar a vocês, leitores, não tem relação com as
proporções gigantescas do hipermercado. Antes, foi fruto do acaso. Estava
voltando do trabalho, exausto, e resolvi desviar de minha rota para e ir ao
hipermercado comprar café solúvel. Eu estava precisando de uma boa xícara de café
instantâneo para relaxar.
Como já era cliente costumeiro, adquiri certa familiaridade com as prateleiras
do tal hipermercado. A do café era no fim do segundo corredor à esquerda, mas
fui andando lentamente. É que eu sou um observador inveterado da mania
brasileira de desistir de levar um produto que está em seu carrinho de compras
e decidir largar ele em qualquer prateleira. Vivo procurando achar produtos que
isolados não dizem nada, mas associados a outros, sintetizam um belo paradoxo
ou uma idéia absurda. Naquele dia não apareceu nada demais: um conjunto de
enormes facas inoxidáveis perto de uma boneca de sorriso estranho e dois
pacotes de caixas de fósforo perto de uma prateleira de álcool etílico. Um dia
desses encontrei uma lata de pasta de creme de amendoim com porção de 30g que
sacia 26% dos carboidratos diários, na seção Diet para diabéticos. O mais
aterrador foi avistar de repente uma galinha horrivelmente empalhada e de olhos
negros e esbugalhados sobre a prateleira de carnes avícolas e bandejas de ovos.
Que mente ardil seria capaz de articular essa decoração medonha? Cheguei à
prateleira certa, peguei o café em pó e voltei pelo mesmo caminho, para evitar
possíveis distrações.
Fui para o caixa rápido, onde despacham compras de até doze itens. Enquanto a
fila caminhava, fiquei pensando em como o ambiente de um hipermercado pode ser
mágico e engraçado, desde que sejamos sensíveis o bastante para perceber.
Para chegar ao caixa rápido propriamente dito, o cliente tem que
obrigatoriamente caminhar por um sinuoso corredor de produtos apelativos. Havia
revistas famosas cheias de manchetes curiosas e cores chamativas para quem
buscava informação. Modelos bonitas de papel com olhos grandes e brilhantes e
lábios suculentos da cor do pecado sorriam para os homens que passassem por
ali. Não precisa ser muito esperto para explicar porque logo depois da revista
playboy, havia os pacotes de preservativos masculinos.
Guloseimas deliciosas perfilavam a cada milímetro, como na casa de doces da
estória de João e Maria, despertando interesse especial nas crianças, que
puxavam o vestido das mães, quase implorando por uma caixa de chocolates ou um
saco de confeitos e pirulitos. Balas vermelhas e amarelas despertavam o apetite
gustativo do público em geral. As meninas mais vaidosas ficavam pedindo não
doces, mas bonecas cheias de apetrechos e afetações. Os meninos preferiam os
carrinhos e jogos eletrônicos de videogames, especialmente os que tinham muita
violência e sangue derramado.
Tinha produtos para todas as idades mentais e as mais variadas circunstâncias.
Até para um adulto, passar por ali era uma espécie de martírio silencioso, um
exercício da força de vontade.
E eu conjeturava: “Se esse é o caixa rápido, teoricamente o outro é o caixa
demorado. Por que pôr aqui esse labirinto, e não no caixa demorado? Depois
ficou claro. Quem vem ao hipermercado fazer compras significativamente grande
não precisa passar por tentação. Os próprios desejos despertam o apetite
capitalista quando o exercício de consumir desperta prazer, e ele já está aqui
para isso. O ser humano tem o instinto primitivo de adquirir bens materiais,
exercer autoridade sobre as coisas e sobre si mesmo. Sorri lembrando do
filósofo alemão Friedrich Nietzsche. Ele me ensinou que a cultura tornou a
felicidade dogmática. Acho que ele só não vaticinou que isso se
concretizaria na compra de um pacote de café em pó solúvel. O que nos move a
fazer compras revela-se talvez, muito menos uma busca racional pela
subsistência, e mais uma satisfação alimentar de nossos desejos inconscientes.
Freud explica, me diriam. Mas não precisamos recorrer à psicanálise. Já nos
recomenda o próprio senso comum fazer compras sempre de barriga cheia, para que
o apetite não desperte impulsos incontroláveis.
Senti uma inexplicável aversão a luz ambiente, e minha cabeça começou a
latejar. Vi luzes piscarem, e fiquei um pouco tonto. Era a enxaqueca atacando.
Uma mulher magérrima e aparentemente hipocondríaca foi logo tirando uma
caixinha de analgésico da prateleira e dizendo como um colega de infortúnio “eu
sei o que você está sentindo...”. De repente pôs a mão no meu ombro e sussurrou
“Confesso que tinha dores semelhantes a essa toda noite” e depois de olhar
atentamente para os dois lados, como para verificar se estava sendo escutada, continuou
“tome um comprimido desse toda noite antes de dormir, é uma panacéia! Mas para
se curar para sempre desse mal-olhado você deve pegar um sapo vivo, colocar
dentro da boca dele um papel escrito SAÚDE e costurar a boca. Depois você deve
enterrar ele vivo no quintal de sua casa. Não se esqueça que tem que ser lua
cheia e meia-noite para que a simpatia vingue”. Fiquei chocado com a
credulidade daquela pobre-coitada. Pensei em dizer “Tá, mas no meu apartamento
não tem quintal. Posso fazer isso num terreno baldio ou num terreiro mesmo?”
mas só agradeci e fingi acenar um tchau para alguém no outro caixa, só pra
mudar de referencial e continuar com meus pensamentos. Era mais instrutivo.
Foi quando vi a alguns metros de mim uma algazarra e um aglomerado de pessoas.
O gerente do hipermercado estava, pessoalmente, dando uma bronca em sete
funcionários. Ele estava alterado, com a face vermelha e as veias saltando no
pescoço. O motivo não ficou claro para mim. Ele apontava para dois carrinhos
lotados de compras e dizia “toda semana, agora? Quando eu encontrar o louco
responsável... Achem-no, ou arranjarei quem faça isso pra mim!”. Todos os
funcionários de patins saíram, cada um para um lado, como que tangidos por uma
fera acuada. Fiquei intrigado com a cena. Fui acordado do devaneio pela mesma
senhora doente que estava atrás de mim na fila. Ela apontava para o caixa,
dizendo que era minha vez, e me desejando boa sorte. Paguei o café e fui embora
com passos apressados.
Durante aquele ano, fiz compras diversas vezes nesse mesmo hipermercado. Em
algumas dessas ocasiões, um fato novamente me despertou a atenção. Vez ou outra
quando eu chegava à fila do caixa encontrava exatamente dois carrinhos de
compras lotados e largados a sua própria sorte, sem nenhum dono à vista. Eles
apareciam sempre em ocasiões diferentes, e nos mais diversos lugares.
Perguntei ao caixa, antes de pagar a feira daquele mês “Me diga uma coisa...
Quem abandona aqueles carrinhos atulhados de compras?” a atendente, Joana
Siqueira, que estava retocando sua maquiagem com a ajuda de um nada modesto
espelho, interrompeu sua atividade e debruçou seu corpo sobre a mesa, dizendo
“Se você soubesse isso iria ganhar um beijo do gerente.” disse ela serrando as
unhas “Eu estou doida pra achar o canalha que deixa esses carrinhos por aí,
sabe? Mas não posso sair acusando qualquer cliente, senão como poderei
encontrar aqui o cara que vai se casar comigo e me levar pras Europa da vida?”.
Imaginei que seria improvável encontrarem esse indivíduo, já que existia um fluxo
de centenas de pessoas indo e vindo todo o tempo, quase todos empurrando seus
carrinhos de compras. Engoli em seco, parei o bate-papo, paguei e fui embora.
Na última vez que fui ao hipermercado aconteceu mesmo de eu encontrar o
“canalha”, que na verdade era um casal. Eu estava entre as prateleiras de arroz
e feijão quando vi um homem e uma mulher suspeitos. No braço dele, a tatuagem
um pouco inflamada com o símbolo do comunismo. Ela com os cabelos longos e
amarrados em um laço. Ambos se vestiam de modo simples, mas paradoxalmente bem
sofisticados. Não era propriamente o aspecto físico que me fazia suspeitar
deles, mas a liberdade e despojamento com que colocavam os produtos em dois
carrinhos. Se eram um casal, por que carrinhos separados? Além disso, algo me
dizia que não é todo dia que se encontra um casal de comunistas abastados
fazendo compras num supermercado capitalista, certo? Por tudo isso, resolvi
segui-los de perto. Confesso que já tinha usado as estantes do hipermercado
para me ocultar de algum conhecido aborrecedor, mas nunca tinha pensado em
usá-las para perseguir desconhecidos.
Concentrei-me na conversa dos dois. Cheguei a ouvi-la dizendo antes de soltar
uma risada irônica “Amorzinho, que tal levarmos esse pote de geléia francesa
para passarmos no nosso pãozinho quentinho matutino?”. Ele, como que também
lendo o roteiro de uma peça teatral que estava apenas na mente, continuou o
espetáculo “Ás vezes eu me assombro com seu bom gosto, querida. Quem sabe, se
houverem sobras, podemos dar a um mendigo na rua?” E ela não fica por baixo
completando “Ah, querido. A cada dia me orgulho mais de você. Como você é
altruísta!”. Dizendo isso, ela beija o pote e o põe no carrinho dizendo “Acho
que vou levar dois. Pena que pode estragar antes da gente comer tudo, né? Mas
vamos arriscar. Adoro nossa vida de aventuras!”.
E foi assim que eles cruzaram todo o supermercado. Os comentários dos dois eram
tão dotados de humor e presunção que às vezes eu quase não segurava o riso.
Algum tempo depois, cansados daquela obsessão que não conhecia limites, eles se
dirigiram em direção à entrada do hipermercado. Inadvertidamente seguindo em
direção ao caixa, perdi a camuflagem das estantes e prateleiras, e eles me
viram olhando-os fixamente. Ela se sentiu ameaçada, indo recostar seu corpo no
companheiro. Ele, que me parecia muito ameaçador com aquele porte reacionário e
barba mal-cuidada, simplesmente ficou parado, me olhando num pedido de empatia.
Passado a fácies assustadora, acenei para os dois, deixei meu carrinho de compras
onde estava, cheio de compras, dei um novo aceno e completei a volta para sair
do hipermercado. O olhar duro deles me seguiu, impressionado. Eram só olhos.
Decerto acharam, amigo leitor, que haviam conquistado um novo amigo comunista.
Mas no fundo eu fui um pouco covarde, não queria era fazer a escolha mais
difícil. Por quais motivos iria entregar aquele excêntrico casal? A perspectiva
de ser beijado pelo gerente do hipermercado não me soava nada agradável. Além
disso, minha consciência ficaria marcada, talvez eu não conseguisse dormir
aquela noite. Não, definitivamente não conseguiria.
Lá fora caia uma neblina fria. Assim que desci da calçada, um enorme sapo,
vindo não sei de onde, pulou bem na minha frente. Eu sei que você, leitor, vai
achar que sou um alienado. Mas juro que ouvi o anfíbio coachar um largo e
áspero “Saúde!”. Olhei para o céu pesado, estupefato. Era noite de lua cheia.
Francisco Assis Pinto Cabral Júnior